Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3658/15.2BELRS-S1
Secção:CT
Data do Acordão:11/19/2020
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:IMPUGNABILIDADE DE DESPACHO QUE JULGA DESNECESSÁRIA A INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS.
Sumário:1. O despacho, proferido na fase de saneamento da causa, que considerou não haver necessidade de determinar a abertura de um período de produção de prova, não rejeita os meios de prova requeridos pelas partes, nos termos previstos no artigo 644.º do CPC.

2. Não podendo ser qualificado como despacho de rejeição de meios de prova, o mesmo só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do n.º 5 do artigo 142.º do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


RECORRENTE: T......., SA,
RECORRIDO: Autoridade Tributária

OBJECTO DO RECURSO:
Despacho proferido pelo MMº juiz do TT de Lisboa que, no âmbito da acção administrativa de impugnação de acto e condenação à prática de acto administrativo devido, peticionando a anulação da informação vinculativa constante do despacho datado de 03-09-2015 do Subdirector Geral, por delegação do Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e a sua substituição por outra nos termos peticionados pela Autora, veio prescindir da prova testemunhal arrolada.
CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:
1ª Foi proferido despacho no qual se determina o indeferimento da prova testemunhal indicada na p.i., por se entender que a mesma não se afigura necessária;
2 .ª Controverte-se nos presentes autos o enquadramento jurídico-tributário da atribuição do uso de quartos arrendados aos colaboradores estrangeiros da Recorrente, que a AT considera tratar-se de remuneração acessória, tributável em sede de IRS enquanto rendimento de trabalho dependente, qualificação essa com a qual a Recorrente não concorda;

3 .ª A Recorrente pretende demonstrar que a atribuição do uso de quartos  em  nada  está relacionada com o exercício da atividade profissional dos trabalhadores nem visa remunerá-los pelo trabalho prestado, mas antes assume uma componente social e emocional de os auxiliar na adaptação ao país; que os trabalhadores não ficam a dispor da casa como se fosse sua, estão bastante limitados em termos de fruição da casa na medida em que dispõem apenas de um quarto (o qual pode aleatoriamente ser num T1 na Damaia ou num T3 no Parque das Nações) e, ainda, apenas a vão utilizar de forma temporária, enquanto não encontrarem habitação própria ou forem realocados;
4 .ª Estes factos não são suscetíveis de serem evidenciados por meio de documentos ou por qualquer outro meio de prova, nem a questão se resume a uma questão de direito, só podendo ser confirmados através do depoimento testemunhal de quem tem conhecimento direto e pessoal sobre a forma de habitação dos colaboradores e o modo de utilização dos imóveis arrendados;
5 .ª A inquirição das testemunhas arroladas na p.i. revela-se, pois, essencial à descoberta da verdade material relativamente ao objeto do processo, nos termos do disposto nos artigos 99.º da LGT, 13.º do CPPT e 90.º, n.º 1, do CPTA, devendo ser revogado o despacho que concluiu pela desnecessidade de proceder à diligência aqui em causa.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e, em consequência, ordenando-se a inquirição das testemunhas arroladas na petição, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!

CONTRA ALEGAÇÕES.

Não houve.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste TCA pronunciou-se pela improcedência do recurso apresentado, por inadmissibilidade de recurso autónomo.

II QUESTÕES A APRECIAR.

O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se o tribunal "a quo" errou ao prescindir da prova testemunhal arrolada com fundamento no facto de a questão a decidir ser meramente de direito. Previamente, é necessário saber se  tal despacho é recorrível autonomamente.

III FUNDAMENTAÇAO DE DIREITO E DE FACTO.
Constitui objeto do presente recurso jurisdicional o despacho proferido pela MMª juiz do TT de Lisboa, datado de 14/01/2019, na fase de saneamento da causa, com base no qual decidiu não existirem  “...temas de prova a elencar, atendendo a que a questão é meramente de direito, pelo que se prescinde da prova testemunhal arrolada”

O despacho recorrido consiste num despacho interlocutório, inserido na tramitação da causa, pelo que, antes do mais, coloca-se a questão prévia da admissibilidade do presente recurso.

Nos termos do n.º 5 do artigo 142.º do CPTA, As decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil.

O despacho que admitiu o recurso com subida autónoma e em separado, datado de 11 de março de 2019, integrou-o na espécie de “despacho de admissão ou rejeição de algum (…) meio de prova”, prevista na al. d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC[1].

O n.º 2 do artigo 644.º do CPC enuncia, de forma taxativa, as decisões intercalares que admitem recurso imediato.

Dispõe esse artigo 644.º, para o que aqui interessa, o seguinte:

“1 – Cabe recurso de apelação:

a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;

b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.

2 – Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1ª instância:

(…)

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

(…)

h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;

(…).”.

Ora, a decisão recorrida não procedeu a um verdadeiro indeferimento dos meios de prova requeridos pelo Autor, ora Recorrente. Decidiu isso sim,  ser desnecessário abrir a fase de instrução, por inexistir matéria de facto controvertida relevante para a decisão da causa.
Não rejeitou qualquer meio de prova, apenas o julgou desnecessário.

Conforme se explicitou no Acórdão deste TCAS de 09/02/2012, proc. n.º 08169/11:

“....o despacho em causa não procedeu a uma verdadeira rejeição dos meios de prova requeridos pelo autor, antes tendo o indeferimento da produção de prova testemunhal por aquele requerida sido consequência da constatação da falta de matéria de facto controvertida e, por conseguinte, da desnecessidade de produzir os meios de prova requeridos pelo autor. Ou seja, considerou-se que as questões suscitadas pelo autor se reconduziam a questões de direito, para cuja resolução era suficiente a prova documental constante dos autos e do processo instrutor.

Ora, sendo assim, o despacho em causa não rejeitou qualquer meio de prova, mas apenas considerou ser desnecessária a produção de prova requerida, o que constitui realidade distinta.

Deste modo, não podendo o despacho em causa ser qualificado como “despacho de rejeição de meios de prova”, o mesmo só pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final, nos termos do nº 3 do artigo 691º do Código de Processo Civil.

E, sendo assim, não pode conhecer-se do objecto do recurso interposto, como defendeu o recorrido (...) na sua contra-alegação”.

Em termos idênticos, vide o Acórdão deste TCAS, sob nº 07779/11, de 19/01/2012, onde resulta:

“(…) Findos os articulados, o Juiz decide se existem ou não factos controvertidos para cuja prova seja necessária uma prova diferente da já existente nos autos (prova documental).

Se entender que sim, que há factos controvertidos, tem de proferir despacho saneador, organizar os factos assentes e a base instrutória (artº 86.6. do CPTA). Sobre a base instrutória, então, é que as partes fazem requerimentos de prova. Não se produz prova sobre factos alegados nos articulados, mas sobre os factos levados à base instrutória.

Se entender que não há factos controvertidos, o processo segue os termos do artº 91.4. do CPTA. Este é um entendimento do Juiz do processo que não é sindicável nesta fase processual, mas apenas no recurso que vier a ser interposto da decisão final: (…)” (sublinhado nosso).

Além disso, a decisão recorrida também não se integra na al. h) do n.º 2 do artigo 644º do CPC.

A propósito escreveu António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, 2017, pp. 203, o seguinte:

“(…) Decisão cuja impugnação com a decisão final seja absolutamente inútil.

Com este preceito o legislador abre a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral importasse a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha a ser obtida.

O advérbio (“absolutamente”) assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador, em termos idênticos ao que antes se previa no art. 734.º, n.º 1, al. c), do CPC de 1961, para efeitos de determinar ou não a subida imediata do agravo.[2]
Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado.”.

Neste sentido, vide Acórdão da Rel. do Porto de 10/03/2015, proc. n.º 710/14.5TBSTS-B.P1, segundo o qual:

“I - As decisões “cuja impugnação com o recurso da decisão final é absolutamente inútil”, de acordo com o disposto na al. h) do nº 2 do artº 644º CPCiv07, são apenas as decisões cuja retenção poderia ter um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, e não aquelas que acarretem apenas mera inutilização de actos processuais”.

Com relevo, vide ainda a decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/10/2009, proc. n.º 224298/08.4YIPRT-B.L1-8:

“4. O requisito da absoluta inutilidade deve continuar a significar que a falta de autonomia do recurso interlocutório deverá traduzir-se num resultado irreversível quanto a esse recurso, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual”.

Como defendido por José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil, Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª Edição, 2008, pp. 81, em anotação ao artigo 691.º n.º 2, al. m), do CPC de 1961:

“A alínea m) prevê as decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil. A jurisprudência formada sobre o anterior art. 734-2, que previa a subida imediata do agravo cuja retenção o tornaria absolutamente inútil, era muito restritiva: considerava-se que a eventual retenção deveria ter um resultado irreversível quanto ao recurso, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual (ver, por exemplo, os acs. do TRL de 5.5.81, FLÁVIO FERREIRA, BMJ, 310, p. 292, e do STJ de 21.7.87, ALVES PEIXOTO, BMJ, 369, p. 489). A jurisprudência constitucional também vinha entendendo que o preceito do revogado art. 734-2 não ofendia o princípio da igualdade nem qualquer norma ou princípio constitucional (veja-se os acs. 208/93 do TC, BRAVO SERRA, BMJ, 425, p. 142, 501/96 do TC, VÍTOR NUNES DE ALMEIDA, Ac TC, 33.º vol., p. 721, e 83/99 do TC, ARTUR MAURÍCIO, não publicado). Além da decisão de suspensão da instância, agora contemplada na alínea f), são escassos os casos em que se possa dizer que ocorre tal absoluta inutilidade se não se admitir a impugnação imediata. Um exemplo apontado na doutrina é o caso do despacho que indefere o pedido de dispensa da audição do requerido em procedimento cautelar (ABRANTES GERALDES, Temas cit., p. 193, posição sufragada por AMÂNCIO FERREIRA, Manual de recursos em processo civil, Coimbra, Almedina, edição de 2006, p. 324 e nota 640).”.

Assim, o despacho recorrido só é impugnável no recurso interposto da decisão final, sendo a decisão que vier a ser obtida nessa altura ainda útil, pois caso seja dado provimento a esse recurso, será aberto um período de produção de prova face à constatação da existência de matéria de facto ainda controvertida, bem como será anulado o processado posteriormente a tal despacho[3]

Do exposto resulta que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 142.º n.º 5, do CPTA, e 644º n.º 2, a contrario, do CPC, a decisão em causa não admite recurso imediato.

V DECISÃO.
Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCAS em não conhecer do objeto do recurso interposto, por irrecorribilidade da decisão impugnada, nesta fase processual da lide.

Custas pela Recorrente – artigo 527º n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 1.º, do CPTA

Lisboa, 19 de novembro de 2020.

(Mário Rebelo)

[Nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, o relator consigna e atesta que têm voto de conformidade as Exmas. Senhoras Desembargadoras Patrícia Manuel Pires e Susana Barreto que integram a presente formação de julgamento.]

 

[1] Seguimos de perto o ac. deste TCAS n.º 236/14.7BELSB-A de 19-12-2017 Relator: ANA CELESTE CARVALHO por a questão ser substancialmente idêntica.
[2] Em nota de rodapé, com o 325, o Autor acrescenta o seguinte:
“Mantém-se actual a jurisprudência fixada, por exemplo, no Ac. do STJ, de 21-5-97, BMJ, 467.º/536, segundo a qual “a inutilidade há-de produzir um resultado irreversível quanto ao recurso, retirando-lhe toda a eficácia dentro do processo, não bastando, por isso, uma inutilização de actos processuais para justificar a subida imediata do recurso”.
Como se refere no Ac. da Rel. de Coimbra, de 14-1-03, CJ, tomo I, pág. 10, um recurso torna-se absolutamente inútil nos casos em que, a ser provido, o recorrente já não pode aproveitar-se da decisão, produzindo a retenção um resultado irreversivelmente oposto ao efeito que se quis alcançar.
A forma adverbial implica que a inutilidade corresponda ao próprio resultado do recurso, não se confundindo com a mera possibilidade de anulação ou de inutilização de um segmento do processado (cfr. o Ac. do STJ, de 14-3-79, BMJ 285.º/242, o Ac. da Rel. do Porto, de 24-5-84, CJ tomo III, pág. 246, o Ac. da Rel. de Coimbra, de 4-12-84, CJ, tomo V, pág. 79, ou a decisão singular da Rel. de Coimbra, de 25-1-11, CJ, tomo I, pág. 7)]”
[3] cfr. Acórdão deste TCAS de 01/10/2015, proc. n.º 12445/15, de onde se extrai o seguinte:
“1. O recurso do despacho interlocutório que desatenda o meio de prova testemunhal arrolado com fundamento expresso em que “dos autos constam todos os elementos suficientes e necessários para decidir… constam os documentos pertinentes a apurar parte substancial dos factos relevantes.” sobe no regime do artº 142º nº 5, 1ª parte, CPTA com remissão para o disposto no artº 644º nº 3 CPC, na medida em que não é subsumível na previsão de decisão intercalar cuja impugnação diferida se revele absolutamente inútil nos termos do artº 644º nº 2 h) CPC-2013”.